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"Não é caridade nem coragem. É amor"

Mulheres quebram o tabu e contam as transformações que chegam com a adoção de um filho. Há medo, angústia, culpa e preconceitos. Rede de apoio é a força que precisam




Por Luciane Evans

É a angústia da espera, o medo de não saber o que vem pela frente e o de não dar conta. São muitos os sentimentos que se misturam. Há uma cobrança maior para dar a eles uma vida melhor do que eles já tiveram um dia. É a solidão, o puerpério e a dor, reflexos naturais da transformação que chega e de uma sociedade, muitas vezes, insensível demais.

"Tem gente que não vê a maternidade do coração como legítima. Pra muitos é um ato de caridade, e falam com você como se estivessem falando de um saco de pão que você comprou na padaria. É doloroso", revela a professora Luana Girundi Soares, mãe de três filhos do coração.


Assim como uma maternidade biológica, há muitos sentimentos que invadem a vida de quem adota e que, por várias razões, acabam se tornando tabu. O que é preciso ser falado é que há transformações físicas e psíquicas que chegam para esses pais quando eles decidem pela adoção. As emoções vão além da espera sem tempo certo de acabar. Eles enfrentam a solidão, preconceitos, medos, dúvidas e as particularidades do universo adotivo. E tem mais: são alvos das perguntas indelicadas, doloridas demais para quem as escuta.

"Todos os processos de transformação emocional e social que vivenciamos ao longo da vida necessitam de um período de adaptação. Na transição para a parentalidade, a adaptação acontece, independentemente de qual via de nascimento dessa família, com dúvidas semelhantes", comenta a psicóloga Mayra Aiello, que é mãe adotiva da Maria. Ela, em parceria com Marianna Muradas, criou o Doulas de Adoção, um programa inédito no Brasil que tem como objetivo dar apoio aos pais que adotam e também formar profissionais de capazes de trabalhar com esse tipo de acolhimento.

“Há solidão materna na nossa sociedade, principalmente se essa mãe nasceu via adoção. Pois muitas vezes pelo fato de a adoção ainda ser um tabu para muitas pessoas, elas não sabem lidar com o tema e se afastam. Ou até mesmo a mãe, por questões de medos e proteção, entra num espiral muito solitário para não correr o risco de ouvir algum comentário desagradável. Assim, as pessoas se fecham e passam por um puerpério muito mais desafiador e solitário”, diz Marianna Muradas.

O grande problema, segundo as doulas, é que a maioria das famílias sofre as angústias, dúvidas e receios em silêncio. “Pois o discurso das pessoas ao redor muitas vezes não é acolhedor, mas, sim, de julgamento, preconceito e cobranças. Logo, a família passa por um período que chamamos de puerpério”.

A professora Luana adotou três crianças de uma mesma família e diz que "a rede de apoio parece ser maior quando a maternidade é biológica". Quem adota, conforme explicam as profissionais, passa por uma série de transformações emocionais, que aparecem desde as dúvidas e angústias durante o preenchimento dos papéis, passando pela escolha do perfil desejado e a ansiedade da espera que não tem um tempo definido. “Tudo isso faz com que todos esbarrem em questões muito sensíveis de cada um”, diz Marianna.

Luana Girandi, que adotou três irmãos, diz que a angústia da espera é diferente se comparada a uma gestação.

“Uma mãe biológica sabe, mais ou menos, quando terá seu filho nos braços. Ela tem um prazo para lidar com a ansiedade. Quando você está numa fila de adoção, seu filho pode chegar amanhã, daqui a um ano, ou daqui a alguns anos”, compara, dizendo ser tão angustiante que qualquer telefonema é uma esperança.

Além disso, Luana diz haver “certezas” na maternidade biológica que não há na adotiva. “Você vê outras mães recebendo seus filhos e nada do seu chegar. As biológicas preparando quartos, enxoval e você não sabe se vai comprar uma cama ou berço, se terá nome ou não”, diz. Isso porque Luana e o marido entraram para a fila da adoção querendo crianças de até 5 anos. E veio o Mateus, com 4 anos e 10 meses. Depois souberam da irmã dele, que estava com 2 anos e meio.

“Assim, em dois meses, eu virei mãe de dois. Depois, soubemos que a mãe biológica deles estava grávida e, pelo histórico da família, resolvemos adotar o Miguel, que chegou aos 9 meses na nossa casa”. Luana diz viver para os filhos, que, segundo ela, trouxeram vida para a casa.

“A mudança maior foi o autoconhecimento. A gente descobre que vai dar conta e vira uma mãe leoa, que defende sua cria. Meus filhos me mudaram, me fizeram uma pessoa melhor. Não sobrou muita coisa da Luana de antes”, diz.

Ela reconhece que uma mãe adotiva é capaz de entender a outra. “Uma rede de apoio é extremamente importante, porque passamos por muitas coisas, inclusive, o preconceito. As pessoas te fazem perguntas indelicadas na frente das crianças, como essas que já ouvi: ‘você adotou esse menino aonde? Ele sofreu que tipo de violência?’ . Te pegam desprevenida e às vezes não sabemos lidar com isso”, revela.

Um outro problema enfrentado por quem adota é que, muitas vezes, as pessoas enxergam a escolha como um ato de caridade. "Eles dizem: como você é uma pessoa boa, iluminada, caridosa. E não é nada disso. Não estou fazendo caridade para ninguém", conta a professora Luana.

Segundo Marianna Muradas, é preciso reafirmar e deixar claro que a adoção não é um ato caridoso e que "o papel do Estado não é garantir filhos para os pais, mas, sim, famílias para essas crianças", avisa.

Um grupo para chamar de seu

Vanici Veronesi sabe bem como são esses sentimentos que chegam com a vinda de um filho. Além de mãe adotiva do Lucas, hoje com 12 anos, ela convive com a adoção de muitas famílias. Ela está à frente do Grupo de Apoio à Adoção de Belo Horizonte (GAABH), que existe há 10 anos, por iniciativa de pais adotivos, entre eles Vanici.

"No início, éramos três famílias adotivas, querendo compartilhar e ajudar um ao outro. Vimos que já existia esse tipo de grupo em outros locais do país e decidimos criar o nosso”, conta. Atualmente são 500 associados e chegam de 80 a 100 pessoas por mês para serem atendidas, algumas encaminhadas diretamente pela Vara da Infância e Juventude da capital mineira.

Quem entra para a fila da adoção precisa passar por um curso preparatório oferecido pela Justiça, antes de estar habilitado a adotar. O que, segundo a presidente do GAABH, pode não ser suficiente para preparar essa família.

“Há muitas mudanças e os pais, às vezes, não estão preparados para ela. Já vimos casos de famílias em que a mulher surtou, como numa depressão pós-parto. Por isso, o apoio é fundamental para que essas pessoas tenham onde se sentirem acolhidas”, diz.

📷📷Vanici Veronesi , presidente do GAABH, é mãe de Lucas, de 12 anos, e diz que o grupo ajuda os pais em todas as fases da vida dos filhos

Ela diz que a maternidade e a paternidade adotivas têm particularidades, e o amparo a esses pais se tornam indispensável, em qualquer fase da adoção. Ela mesma conta que pediu socorro ao grupo quando Lucas, seu filho, tinha 8 anos e perguntou, chorando, sobre a sua genitora. “Ele chorou e eu também. E o grupo me ajudou”, diz.

Há pessoas que chegam no GAABH antes de iniciarem o processo de adoção e, de acordo com Vanici, vão abrindo a mente e o coração, ao se distanciarem da criança sonhada e se aproximarem da real.

O grupo é formado por todo tipo de família: mães e pais solos, casais heterossexuais e homoafetivos. “Muitos chegam ansiosos, com expectativas e ilusões. Sonham e idealizam o filho e, com o grupo, vão vendo que a realidade é diferente”, diz. Ela aposta que esse tipo de ajuda é importante para reduzir o número de crianças devolvidas aos abrigos.

Toda vez que alguém está para receber o seu filho é uma festa. “A gente costuma dizer que a cegonha chegou. Eu, que adotei meu menino quando ele tinha dois dias de vida, vivo tudo de novo”, alegra-se Vanici.

O grupo se reúne fisicamente e virtualmente por meio do WhatsApp. Há psicólogos, advogados, jornalistas. Todos voluntários e pais adotivos."A maternidade não é para todos. Não basta querer. Essa espera também não é para todos. Por isso é importante esse acompanhamento antes e depois da chegada dos filhos”, afirma Vanici.

Apesar da importância para os pais adotivos, o GAABH não uma sede própria. Algumas reuniões, de acordo com Vanici, ocorrem no espaço cedido pelo Cefet-MG . Para os atendimentos externos, são feitas locações de salas. Todo o trabalho é voluntario.

Formação de doulas para acolher a nova família

O Doulas de Adoção, criado por Marianna Muradas e Mayra Aiello, ambas com vivências diferentes de adoção, surgiu de uma longa conversa entre as duas, quando elas estavam imersas no puerpério. A Mayra é psicóloga e mãe via adoção da Maria. Trabalha com o ciclo gravídico-puerperal há alguns anos, na assistência ao parto humanizado, com profissionais e famílias. A Mari é Educadora Feldenkrais, mãe do Tom e foi adotada quando era bebê. Também é Doula, educadora perinatal e Instrutora GentleBirth.

📷📷Mayra Aiello adotou Maria e é uma das idealizadoras do Doulas de Adoção (Foto: Maíra Trindade)

"Conversávamos muito sobre o tema desde 2016 mas foi só em 2019, quando as duas vivenciavam o puerpério, que tivemos a coragem de realizar esse desejo e formatar o trabalho das Doulas de Adoção", revela Marianna. O programa foi criado em São Paulo, com a previsão de atender interessados em se formar como doulas dessa área em todo o Brasil.

Neste mês de outubro, elas lançaram a formação no Siaparto, como a primeira do Brasil para esse tipo de doula. Marianna, que já trabalhou com isso nos EUA, conta que por lá, pelo menos na Califórnia, onde teve experiência com o tema, é possível que ocorra uma adoção direta na qual a genitora escolhe a família que irá adotar o bebê.

"E nesses casos o trabalho da doula se inicia muitas vezes na gestação e acompanhando o parto, do qual existe a possibilidade de a família adotiva participar, e já receber o bebê na sala de parto após a despedida da genitora, caso ela desejar. Dessa maneira todo o momento do pele a pele já é realizado com a família adotiva e a doula continua acompanhando ambos durante o período de adaptação", conta.

Como tudo muda literalmente após um telefonema, processar todas as emoções e mudanças que a chegada da criança traz, segundo Marianna, se torna fundamental. E a doula auxiliará muito para que aconteça uma adaptação mais gentil e acolhedora, contribuindo para diminuir as chances de uma devolução - o que para a criança é um novo abandono.

Conscientizar-se para a adoção

De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção, ha atualmente 46 mil pretendentes na fila da adoção, sendo 5,8 mil em Minas Gerais. Na outra ponta, são 9,5 mil crianças cadastradas, sendo 1 mil em Minas. Para quem ainda está dando os primeiros passos, Marianna e Mayra aconselham o trabalho de conscientização da escolha.

“Há, sim, um processamento de um luto, caso a vontade de adotar venha após a perda gestacional ou neonatal de um filho, ou com uma não gestação biológica. Acreditamos que elaborar esse luto antes de entrar no processo seja fundamental. É preciso compreender que um filho não substitui o outro e, portanto, é necessário ressignificar esse filho que virá por meio da adoção”, diz Mari.

Com uma elaboração consciente sobre as motivações, descaracterizada a caridade e o altruísmo, e encarando a escolha como uma das formas de ter filhos e aumentar a família, “o projeto da maternidade se construirá mais real e menos idealizado".

Para os que vão adotar, elas aconselham um mergulho em um processo de autoconhecimento para identificar claramente as motivações para a adoção e o que precisa ser visto e organizado para que o processo flua de forma saudável emocionalmente para toda a família.

“Busque pares que já adotaram ou que estão na fila da adoção para trocas significativas e reflexões. Esteja consciente sobre os desafios que envolvem a transição para a parentalidade, a mudança nas relações sociais, conjugais e afetivas e a tudo que envolve a criação e educação de uma criança ou adolescente”, diz Marianna.



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